Carla Guterres Graña
Atire a primeira pedra quem nunca gaguejou: ao falar em público em frente a um microfone, ao fazer uma declaração de amor, ao esquecer-se do que deve falar, quando cansado ou quando nervoso? Sim, por incrível que pareça a gagueira, ou melhor, a disfluência também faz parte da comunicação de todos os falantes não-gagos do mundo inteiro. Quer dizer que o ato de fala implica inevitavelmente em errar, esquecer, repetir sílabas ou palavras inteiras? No-novamente a resposta é afirmativa, gaguejamos em uníssono. A disfluência não é somente exclusividade dos que apresentam este sintoma de linguagem na sua fala. No entanto, o que diferencia a fala de um gago da de um não-gago? O simples e complexo fato de que o ato de gaguejar enquanto falamos não nos impede de continuar a falar, não nos rotula de “gago” e não nos faz sentirmo-nos mal-falantes. Contrariamente, os sujeitos que apresentam o rótulo de “gagos”, que perdem o frescor e a espontaneidade da fala e que vivem desesperadamente tentando controlar e despistar a sua gagueira, só conseguem com isso tornar a sua fala tensa, marcada por bloqueios, repetições e desvios.
Já Freud, em um artigo de 1891 denominado Sobre as Afasias, refere que a parafasia (sintoma encontrado nas afasias e que se caracteriza pela substituição de uma palavra por outra- chamar garfo de colher- ou de um som por outro - chamar uma colher de mulher) também poderá ser encontrada na fala do indivíduo normal, sob situações de stress, distração ou perturbação afetiva. Esta simples observação permite constatar que o sintoma da fala está presentificado na fala cotidiana, ou seja, que o normal, o patológico, o regular, o irregular são características pertencentes à linguagem. O lapso, o “erro”, a pausa, o imprevisto, a criação, a poesia realçam a marca do humano na linguagem. A perfeição e a seriação da fala serão, portanto, delegadas às máquinas e aos robôs!
O Discurso do Rei está em cartaz nos cinemas brasileiros, recebeu diversas indicações ao Oscar e levou o prêmio de melhor filme do ano. Além do filme inglês, podemos também presenciar diariamente na televisão a luta (e a maneira quase original de lidar com a gagueira) que um dos concorrentes do BBB11 trava na disputa do prêmio do programa. Ele é “carinhosamente” chamado de “gago” pelos amigos-¬concorrentes de confinamento. A gagueira esta na moda, e de certa forma no bom sentido! Espaços são abertos na mídia para a discussão (espaços mais que necessários para discutirmos e divulgarmos a profissão e o fazer do fonoaudiólogo) e a informação da população sobre a patologia: o quê fazer, o quê não fazer com os “gagos”, e a eterna dúvida: a gagueira tem origem emocional ou orgânica? Lemos em artigos bastante categóricos e midiáticos: A gagueira não é emocional! Nenhuma pesquisa, entretanto, chegou, até o momento, a uma resposta conclusiva que demonstre de modo irrefutável o quê, no organismo humano, explica a gagueira.
O sujeito é linguagem, o sujeito se constitui na linguagem, como demonstrou exaustivamente o psicanalista francês Jacques Lacan; todos nós somos feitos de histórias, como já disse o poeta. Não se poderá, portanto, pretender excluir da terapêutica da linguagem a subjetividade do paciente (sujeito) em questão. Pela sua boca circulam os significantes e os afetos que o constituíram. Pela boca o seu ser se diz. Ele não poderá de forma alguma ser circunscrito ao aparelho fonatório ou à insuficiência funcional de áreas ou de circuitos cerebrais. Como explicar os “gagos” que somente tropeçam na fala quando falam com figuras de autoridades, como o pai ou o chefe? Como explicar a total fluência da fala do Rei George VI, no filme referido, durante os períodos em que estava irritado com o terapeuta ou com outra pessoa? Como explicar o fato de nenhum gago gaguejar quando conversa consigo mesmo (Logue faz este mesmo questionamento ao então Duque de York em uma consulta)? Seria possível, face a tudo isto, tratar da gagueira somente com exercícios e técnicas fonoaudiológicas?
Certamente Lionel Logue (Geoffrey Rush) era um terapeuta pouco ortodoxo para sua época. Antes desse speech therapist pouco convencional, a realeza havia experimentado renomados médicos na esperança de remover aquela “vergonha” da boca do segundo filho do rei. Médicos que tratavam exclusivamente da boca. Aliás, essa era a imperativa demanda da realeza: resolver o problema da fala sem penetrar na intimidade do duque. Elisabeth (Helena Bonham Carter), esposa do duque, procura Lionel como uma última cartada contra a gagueira persistente do marido. Lionel faz, então, sua primeira exigência: ele e o futuro paciente deveriam se tratar pelo nome próprio. Ali não estaria o Duque de York, filho do atual rei da Inglaterra, mas simplesmente Bertie (maneira como o duque era chamado pela família), com Lionel. Dois homens, sem sobrenomes ou títulos. Sob tal condição, Lionel começa o tratamento, e para desespero do futuro rei ele quer saber detalhes de sua historia: como e quando a gagueira começou, como é a dinâmica familiar, com quem Bertie tinha mais apego na infância, etc. George desconfia da curiosidade demonstrada pelo terapeuta; para que saber tudo isso se o problema é na boca? Para que toda essa conversa tola? Logue leva em frente o tratamento e lança mão de exercícios de relaxamento, de dicção, de impostação de voz e de mais conversa. O futuro rei, descrente de tudo e de todos, precisou acreditar que aquele sujeito excêntrico e heterodoxo poderia ajudá-lo. A terapia continua, e Bertie e Logue estreitam o vínculo afetivo! O atual rei morre e o filho, atordoado com a morte do pai, procura o terapeuta de fala. Mas trata-se ainda e somente de um terapeuta de fala? Ou de alguém que se ocupa também da pessoa de Bertie? O espaço (setting) terapêutico se expande! O irmão mais velho de George, pouco preparado para assumir o trono, deverá assumir o lugar do pai. Para Logue parece evidente que George será o novo rei, e não seu irmão. Ele se assusta com o assinalamento de seu terapeuta; afinal, se mal pode falar, como assumiria um cargo tão importante? Seria mais uma loucura de Logue? Por ironia do destino, pouco tempo depois David (Guy Pearce), irmão de George, renuncia a seu direito, cabendo, então, ao Duque de York assumir o trono. George VI assume o reinado no início da segunda guerra mundial e tem a responsabilidade de comunicar ao mundo que a Inglaterra declarara guerra à Alemanha. O discurso do Rei George deverá ser veiculado pelos modernos meios de comunicação da época: o rádio e a televisão. O rei deveria, portanto, falar bem, clara e fluentemente; ter “voz ativa”. Para isto a presença de Logue, este Outro com que desenvolvera um laço que se manterá por toda a vida, terá uma importância fundamental.
Poderíamos, diante do relatado até então, indagar o que efetivamente auxiliou o Rei em sua luta contra gagueira: os exercícios técnicos fonoaudiológicos ou a relação afetiva estabelecida com o terapeuta? A experiência e um certo trânsito pela transdisciplinaridade nos levariam a responder que os dois fatores foram decisivos, e mais, que eles são interdependentes, um não funciona sem o outro. Nenhuma técnica sobrepõem-se ao vínculo terapêutico, que é intersubjetivo; o instrumento precisa do humano, do inter-humano, do que não é palpável, nem medido, para que se faça eficaz em um tratamento. Nesta perspectiva, a abordagem terapêutica deverá construir um novo sentido para a imagem de falante, que altere a relação do sujeito com o sintoma e com o Outro, exigindo do fonoaudiólogo uma leitura da situação clínica que ultrapasse os estreitos e ingênuos limites ditados por uma perspectiva estreitamente organicista.
9 comentários:
É um erro monumental querer equivaler as rupturas de fluência que ocorrem na gagueira crônica com as disfluências comuns que afetam qualquer pessoa.
As disfluências comuns são resultado de indecisão sobre o que dizer, reformulação de conteúdo e insegurança sobre o que está sendo falado.
Isso é bastante diferente do que ocorre na gagueira, quando a pessoa sabe exatamente o que quer dizer mas o aparelho fonador não responde.
Outro erro que revela a pouca familiaridade da autora com o tema é a generalização pouco rigorosa que ela faz ao afirmar de forma precipitada e irrefletida que "nenhum gago gagueja quando conversa consigo mesmo". Isso não é verdade. Tenho gagueira e posso afirmar que essa generalização não procede.
Porém, o trecho que deixa mais evidente a falta de domínio do tema pela autora é a infeliz colocação reproduzida abaixo:
"Nenhuma pesquisa, entretanto, chegou, até o momento, a uma resposta conclusiva que demonstre de modo irrefutável o quê, no organismo humano, explica a gagueira."
Mais uma vez a verdade foi violentada.
Embora a autora desconheça a informação, a ciência já conhece uma das causas da gagueira. E essa descoberta já tem mais de um ano (basta procurar no youtube por "gagueira + genética").
A autora poderia pelo menos ter se informado melhor para não cometer essa gafe, porque não há nada mais vergonhoso do que tentar parecer douta e, inadvertidamente, acabar sendo delatada pela própria ignorância.
Que pena!!!
Tanta informação disponível e fica escrevendo estes disparates que só aumentam o preconceito e a discriminação contra nós gagos.
Lamentável!!!!
Texto confuso!!!
O que a autora quis dizer??É uma crítica aos fonoaudiólogos que tratam gagueira exclusivamente baseados no organicismo??Ao que eu saiba não existem fonos que sejam tão tapadas. O que vejo e muito, são fonos tão desinformadas quanto a autora que confundem causa com efeito e imaginam que a gagueira é um problema emocional, psicológico.
Apesar de ser psicóloga a autora poderia estudar um pouco a gagueira antes de se meter a falar sobre o assunto.
Minha querida Carla:
Adorei teu artigo! Parabéns!
Obrigada por enviá-lo para mim. Ele é forte, claro, incisivo sem deixar de ser leve - ah, a leveza, aquela qualidade tão importante da literatura, exaltada pelo Calvino em suas Lezioni Americane!!! E, sobretudo, esclarecedor. Presumo que não somente o grande público se beneficiaria de sua leitura, mas também e sobretudo, teus colegas fonoaudiólogos. Não pensaste em publicá-lo? Na seção Opinião da ZH ou do Correio, por exemplo? O problema, nestes veículos, é sempre a extensão, pois eles exigem textos minúsculos!
Ainda não vi o filme, pois estou envolvida com a redação da minha tese e, por isso, são poucos os momentos de "distração". Como pretendo defendê-la no final deste semestre, há muito o que fazer. Mas vi no Youtube alguns trechos e também tenho acompanhado resenhas a respeito, o que me deixou entusiasmada com o filme.
E, para ti, meu mais carinhoso abraço, repleto de admiração,
Tânia Ramos Fortuna
Programa de Extensão Universitária "Quem quer brincar?" (www.ufrgs.br/faced/extensao/brincar)
Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - BRASIL
2)
Querida Carla,
com muito prazer te ouço nestas palavras. Achei o filme brilhante pela postura terapeutica e do holding amoroso de Logue, com o NOME DO PAI posicionado na medida certa. Para mim, estudando hoje e revendo Winicott e Merleau-Ponty sobre psicossomatica e o ser no mundo, fica claro a relação, em que sempre acreditei que o sintoma é apenas uma alteração frequencial da unidade psicossoma e não uma dissociação de algo que vinha bem porque estava numa unidade de frequencia X e passou a Y. O continuum tempo-espaço é vibracional e sofremos as consequencias das mudanças de forma inteira e não dissociadamente. Este,talvez, seja o erro da medicina e, quem sabe, a reboque, da psicologia. Talvez, possa te dizer isto, porque fiz primeiro medicina e depois estudei dinâmica psicanalítica e possa, pelos múltiplos anos de trabalho e escuta, dar importância ao continuum.
Anna Ledur – Médica e Psicanalista
3)
Carla querida: parabéns pelo belo texto! Acho que teu texto merece circulação maior. Vi que a Marlene está se ocupando disso.
Cutucada pela colega Marcia Fabricio, tb comecei a esboçar umas linhas sobre a polêmica que o filme trouxe à tona. Se ficar razoável, te envio para dares uma olhada.
bj, Luiza Surreaux (Fonoaudióloga e Docente do curso de Fonoaudiologia da UFRGS)
4)
O artigo da nossa querida Carla Graña está excelente , aliás as carlas são demais! Eu sugeri que a Carla mandasse para que o claudio ou a kelly coloquem no blg do crefono , eu estou tentando publicar em algum jornal , se a tentativa falhar vou colocar em nosso site ou mandar em mala direta para nossos colegas , pois na verdade está excelente Marlene Danesi – Presidente do Conselho Regional de Fonoaudiologia
Colega!
É inadimissível e inaceitável, que uma fonoaudióloga escreva que o tratamento da gagueira deva ser psicológico, quando a ciência comprova a relação gagueira + genética. Estudos mostram as diferenças de funcionamento em cérebros de pessoas que gaguejam e que não gaguejam. Isso comprova que o tratamento para estes indivíduos é FONOAUDIOLÓGICO.
Não podemos negar que o componente emocional prejudica, mas prejudica qualquer pessoa. Nos casos de pressão alta, em diabetes... As questões emocionais pioram os quadros, MAS NÃO SÃO AS CAUSADORAS, por isso pode até existir o acompanhamento psicológcio para esses quadros, mas não visando o tratamento da gagueira e sim fatores externos a ela. O tratamento da gagueira, como já disse é OBJETO DA FONOAUDIOLOGIA.
Penso que todos os profissionais da fonoaudiologia podem dizer e escrever sobre qualquer área da nossa profissão, mas pelo menos leiam mais a respeito antes de escreverem asneiras e prejudicar toda classe.
Espero que o Conselho Regional e Federal cumpram suas funções de fiscalização e não corroborem com maus profissionais. NOSSA CATEGORIA ESTÁ EM JOGO NISSO.
E, por favor, colega, estude mais. Seu texto mostra sua completa falta de conhecimento no assunto.
Acho que a primeira coisa que a autora precisa levar em conta é que o primeiro comentário crítico ao seu texto foi feito por uma pessoa que POSSUI gagueira.
Portanto, se o que ela escreveu não bate com a experiência relatada por quem POSSUI o problema, então ela precisa urgentemente rever seu ponto de vista e evitar fazer generalizações apressadas e levianas sobre gagueira.
Recomendo que a autora e aqueles que a elogiaram tenham mais respeito pela opinião das pessoas que gaguejam, pois são elas que vivenciam o problema na pele. Assim sendo, são elas que podem nos ensinar mais sobre o problema do que qualquer outro especialista.
Pensem nisso.
Alberto Gillard - Psicanalista
Estou bastante chocada com a falta de sensibilidade das fonoaudiólogas, médicas e psicanalistas que escreveram neste espaço.
Uma pessoa que gagueja colocou um comentário aqui e ninguém se preocupou em dar ouvido a ela, pois a maioria estava mais preocupada em somente elogiar a autora do texto, sem sequer parar para questionar a validade do que ela escreveu frente ao que foi trazido pela pessoa que possui e vivencia o problema.
Acho que a gagueira é o único distúrbio em que os pacientes precisam lutar o tempo todo com os ditos "especialistas" para que possam ser realmente compreendidos, ouvidos e respeitados.
Por favor, sejamos mais humildes e aprendamos a ouvir mais as pessoas que gaguejam.
Kátia Amaral (Fonoaudióloga)
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