Reflexões sobre a origem e evolução da linguagem
Reflections about the Origin and Evolution of Language
José Fernando Fontanari*
RESUMO: Entender a origem e evolução da linguagem é uma das questões mais importantes da Ciência e, quem sabe, também das Humanidades. De fato, frequentemente ouvimos que a linguagem é a principal qualidade que nos distingue dos outros animais. Algumas vezes, a importância da linguagem é até mesmo colocada acima da do pensamento, como ilustra essa frase de DE SAUSSURE (1966), “Sem a linguagem, o pensamento seria uma névoa vaga e inexplorada. Não haveria idéias pré-existentes e nada poderia ser distinguido antes do surgimento da linguagem.” Nesse curto ensaio, vou apresentar algumas idéias recentes sobre a origem e evolução da linguagem, enfatizando a conexão entre linguagem e seleção natural; já que esse é o único princípio que dispomos para explicar a emergência de estruturas complexas na Natureza.
ABSTRACT: Understanding the origin and evolution of the language is one of the most important questions of Science and, maybe, the humanities. In Fact, we frequently listen that language is the main quality that distinguish us from other animals. Sometimes, the importance of language is even put over the thought, as de Saussure (1966) asserts “ Without language, thought is a vague, uncharted nebula. There are no pre-existing ideas, and nothing is distinct before the appearance of language.” In this short essay, I will present some recent ideas about the origin and evolution of language, emphasizing the connection between language and natural selection; since this is the only principle that we have to explain the emergence of complex structures in the Nature.
Descritores: Origem, Evolução, Linguagem
Keywords: Origin. Evolution. Language.
Dada a importância e a fascinação das questões referentes à linguagem[1], não é de se estranhar que muitas idéia fantasiosas tenham sido propostas para explicar sua origem. No século XIX, havia duas teorias populares, denominadas pejorativamente pelos lingüistas contemporâneos de “ha-ha’ e “au-au’. A teoria “ha-ha” sugere que a linguagem se originou dos gritos instintivos de alegria e dor, enquanto que a “au-au” supõe que os grunhidos de animais tiveram papel fundamental, já que os caçadores primitivos provavelmente imitavam aqueles sons como estratégia de caça (AITCHISON, 1996). Bem, depois dessa amostra ninguém irá criticar a Société Linguistique de Paris por ter banido em 1866 toda e qualquer discussão sobre a origem e evolução da linguagem.
A proscrição da sociedade parisiense foi tão efetiva que até meados dos anos 80 nenhum lingüista se atreveu a abordar o tema das “origens”. E, talvez, jamais se atrevessem, não fosse a percepção da comunidade científica de que a linguagem era importante demais para ser deixada aos lingüistas[2], e da conseqüente avalanche de teorias sobre a origem da linguagem propostas por psicólogos, antropólogos, neuro-cientistas, biólogos, etc. Nesse ensaio vou descrever brevemente minhas teorias favoritas, que, ao contrário de suas predecessoras do século XIX, procuram explicar a linguagem como um produto da evolução pela seleção natural por uma comunicação mais eficiente. Antes disso, porém, vamos ver o que os lingüistas têm a dizer sobre o assunto.
As duas faces de Chomsky
Após quase meio século de atividade, o nome Noam Chomsky pode ser considerado sinônimo de lingüística. Pode-se idolatrá-lo ou detestá-lo, mas não dá para ignorá-lo. De fato, Chomsky está entre os dez autores mais citados da área das Humanidades. A frente dele só Marx, Lênin, Shakespeare, a Bíblia, Aristóteles, Platão e Freud; mas é o único ainda vivo da lista dos ‘dez mais’[3].
Chomsky é o principal proponente do paradigma nativista da linguagem, que considera a capacidade lingüística como uma coleção de habilidades cognitivas de domínio específico, única à espécie humana e que, de algum modo, foi codificada em nosso genoma (CHOMSKY, 1972). Esse conjunto de habilidades passou a ser conhecido como ‘órgão da linguagem’. Assim, a linguagem não é aprendida; ela é inata aos humanos. A facilidade com que crianças normais aprendem a gramática de sua língua nativa, face à pobreza do estímulo lingüístico a que são expostas, é geralmente invocada como evidência forte a favor desse paradigma.
O paradigma rival - o empiricismo – defende que não há nada de especial na linguagem, e que esta pode ser aprendida pelos algoritmos de aprendizado de domínio geral, inatos a nossa espécie (BATES & ELMAN, 1996). Embora, na prática, a visão empiricista seja adotada quando se tenta ‘ensinar’ linguagem a robôs ou a agentes virtuais (CANGELOSI et al., 2007), é realmente difícil aceitar que a linguagem não seja especial: o sempre perspicaz Charles Darwin já havia notado que o balbuciado dos bebês é um sinal claro de que “humanos têm um instinto natural para falar” (BLOOM, 2000).
O problema com Chomsky, e isso poderá surpreender o leitor, é que ele, juntamente com outros lingüistas influentes (BICKERTON, 1990), acredita que a finalidade da linguagem não seja a comunicação! Em suas palavras: “… a linguagem não é considerada propriamente um sistema de comunicação. É um sistema para expressar pensamento, o que é algo bem diferente....Mas, qualquer que seja o sentido adotado para o termo, comunicação não é a função da linguagem, e pode até mesmo ser de pouca importância para a compreensão das funções e natureza da linguagem” (CHOMSKY, 2000, p. 75). Se a função da linguagem não é a comunicação, então para que serve? Segundo Chomsky, “a linguagem é usada principalmente para seus próprios fins: ‘conversa interior’ em adultos e monólogo em crianças” (CHOMSKY, 2000, p. 77). Observe que a questão das origens torna-se totalmente irrelevante nesse contexto; já que a linguagem passa a ser vista primariamente como um sistema representacional, desenvolvido muito antes que nossos ancestrais fossem capazes de pronunciar a primeira palavra (BICKERTON, 1990).
Não é surpresa, portanto, que Chomsky encabece a lista dos críticos da visão evolucionista convencional da linguagem, na qual a competência lingüística do humanos teria evoluído gradativamente em resposta ao ganho adaptativo de uma comunicação mais precisa e eficiente (PINKER & BLOOM, 1990; PINKER, 1994).
Na década de 90, Chomsky mudou radicalmente sua posição em relação à quase ‘infinita’ complexidade da linguagem, que necessitava de um ‘órgão’ próprio para seu domínio. Através de seu Programa Minimalista, agora Chomsky propõe que a linguagem seja vista como um mapa (aplicação) entre sons e conceitos; somente representações de sons (Forma Fonética) e representações semânticas (Forma Lógica) seriam indispensáveis (CHOMSKY, 1995). De repente, toda a complexidade da estrutura lingüística revelada nos últimos 50 anos passou a ser considerada supérflua para se entender a linguagem. A complexidade do fenômeno lingüístico foi associada unicamente a necessidade de se criar uma interface entre os sistemas que manipulam sons e conceitos, não sendo, portanto, inerente a linguagem. Apesar dessa reviravolta, que naturalmente dividiu a comunidade lingüística, Chomsky manteve sua posição de que a seleção natural não teve nenhum papel na evolução da linguagem e de que a função de comunicação é, para dizer o mínimo, secundária. Mas é difícil imaginar um mapa entre sons e conceitos cuja utilidade não seja a comunicação desses conceitos. Talvez a linguagem seja mesmo importante demais para ser deixada aos lingüistas...
A teoria do parasita
Nenhuma das teorias do século XIX sobre a origem da linguagem pode sequer ser comparada em esquisitice a idéia do biólogo e antropólogo Terrence Deacon: a linguagem é uma entidade que infecta e parasita o cérebro das crianças buscando a sua auto-replicação (DEACON, 1997). O fato da linguagem não ser um organismo, um ser vivo por assim dizer, não enfraquece o argumento, já que os vírus, embora também não sejam considerados seres vivos, não têm competidores quando o assunto é replicação. Mas aqui estamos falando de um tipo bem diferente de replicador, não de uma molécula real como o genoma viral, mas de uma idéia mesmo, algo que só existe na mente humana. A existência de tal replicador foi proposta bem antes, por Richard Dawkins que o batizou de meme em analogia ao gene (DAWKINS, 1976). Vale observar que, sob o ponto de vista matemático, pensar a linguagem como um parasita que se transmite tanto verticalmente (de pai para filho) como obliquamente (de adultos para crianças) produziu uma descrição quantitativa bastante adequada da competição entre línguas e, em particular, da dinâmica de extinção das línguas (ABRAMS & STROGATZ, 2003).
Mas o que é realmente novo nessa proposta é a idéia de que a linguagem e a mente, assim como parasitas e hospedeiros, co-evoluem, ou seja, uma se adapta a outra no curso da evolução. De fato, segundo Deacon, a estrutura da linguagem está constantemente sofrendo a pressão da seleção natural, pois a cada geração ela deve ‘passar’ pela mente das crianças e somente aquelas operações e elementos que são fácil e rapidamente aprendidos passarão intactas para as próximas gerações. Talvez fosse exatamente isso que Max Müller, filólogo contemporâneo de Darwin, quis dizer com a frase “Uma luta de vida-e-morte está constantemente ocorrendo entre palavras e formas gramaticais em cada linguagem. As formas melhores, mais curtas, mais fáceis estão constantemente levando vantagem, devendo seu sucesso as suas próprias virtudes intrínsecas.”
Deacon conseguiu colocar a questão do aprendizado da linguagem de uma forma totalmente diferente: a razão por que crianças conseguem aprender sua língua nativa sem nenhum esforço aparente, não é porque elas são dotadas de um órgão da linguagem a la Chomsky, mas sim porque a linguagem foi selecionada de forma a se adaptar às habilidades e limitações cognitivas das crianças, tornando seu aprendizado uma tarefa aparentemente simples. Difícil de entender? Pois bem, lembra dos computadores pessoais (PCs) do início dos anos 80, com sistema operacional DOS e seus comandos de linha dir, del, copy, save, run, etc.? Uma tremenda revolução na vida dos jovens universitários da época, sem dúvida. Mas não lembro de crianças de oito anos fazendo suas lições de casa naqueles PCs. O que aconteceu? Será que em uma única geração as crianças ficaram tão mais inteligentes assim? Sabemos exatamente o que aconteceu: simplesmente o software[4] foi se adaptando as nossas habilidades (ou melhor, limitações) cognitivas de modo a tornar seu uso cada vez mais fácil. O mesmo deve ter se passado com a linguagem, segundo Deacon.
A Inteligência Maquiavélica
Um tópico discutido com freqüência em textos sobre a evolução da linguagem é o tamanho anormal do cérebro dos primatas (em particular, dos humanos) relativo às suas dimensões corporais. Para se ter uma idéia, um cérebro humano tem em torno de 1600 centímetros cúbicos, enquanto que o cérebro de um mamífero típico com o nosso peso (uns 55 kg) tem apenas 180 centímetros cúbicos. Agora, se considerarmos que o cérebro corresponde a apenas 2% de nossa massa corporal mas consome cerca de 20% da energia que absorvemos dos alimentos, deveria haver uma vantagem evolutiva óbvia em se ter um super-cérebro. Só que até hoje não se chegou a um consenso de qual seria essa vantagem, se é que ela existe mesmo.
A hipótese da moda é a da Inteligência Maquiavélica proposta pelos psicólogos britânicos Richard Byrne e Andrew Whiten em 1988: um super-cérebro[5] é necessário para que animais que vivem em grupos mantenham atualizadas a altamente volúvel lista de amigos e inimigos (BYRNE & WHITEN, 1988). A evidência mais forte a favor dessa hipótese vem de outro psicólogo britânico, Robin Dunbar, que correlacionou o tamanho médio S dos grupos de diversos primatas com a razão R entre o volume do neocortex e o volume do restante do cérebro (DUNBAR, 1998). O resultado dessa análise tem implicações tão curiosas que vale a pena reproduzi-la aqui. A Figura 1 é uma interpretação artística dos dados originais de DUNBAR (1998). Dessa figura, fica claro que existe uma correlação positiva entre R e S: quanto maior o grupo social, maior será o neocortex e, grosso modo, mais inteligente será o primata. Assim, parece mesmo ter sido a complexidade da vida social a responsável pela pressão seletiva que produziu os super-cérebros dos primatas.
S
100
10
1
0
0.1
10
1
R
humanos: 150
4
Figura 1 O eixo vertical mostra o tamanho médio do grupo social (S) e o eixo horizontal a razão (R) entre o volume do neocortex e o volume do restante do cérebro. Nos humanos o neocortex corresponde a 80% do volume total do cérebro de modo que R= 80/(100-80) = 4. Os símbolos · indicam os valores medidos de S e R para diferentes espécies de primatas. Os lêmures estão no extremo inferior e os chimpanzés no superior. Os humanos não aparecem nesse gráfico, pois não conhecemos o tamanho médio dos grupos de nossos ancestrais hominídeos.
Onde os humanos entram nessa análise? Não há nenhum vestígio arqueológico do tamanho dos grupos de hominídeos que vagavam pelas savanas africanas há uns 200 mil anos atrás mas, assim como os chimpanzés e babuínos de hoje formam grupos em torno de 50 indivíduos, nossos ancestrais também deveriam formar grupos de um certo tamanho característico. Como determinar esse tamanho? A Figura 1 nos dá a resposta: se ajustarmos os dados dos outros primatas por uma reta, como mostrado na figura, essa reta cortará a linha vertical R=4 (a razão entre o volume do neocortex e restante do cérebro para humanos) em S = 150, que é então o valor procurado.
Se os humanos conviveram em grupos de 150 pessoas, em média, por dezenas de milhares de anos, esse número mágico deve de algum modo ter reflexos ainda hoje. Uma busca pelo número 150 na história da civilização revela, de fato, algumas coincidências intrigantes (DUNBAR, 1998). Por exemplo, esse é exatamente o tamanho dos clãs de todas as tribos conhecidas. Entre os aborígines australianos, os membros de um clã reúnem-se uma vez ao ano para a realização dos rituais de passagem e contratos de casamentos futuros; por isso todos os membros têm perfeito conhecimento de suas relações de parentesco. Os huteritas[6] vivem em comunidades com pouco mais de 100 indivíduos, pois elas são divididas em duas quando a população chega aos 150 indivíduos: a razão é que quando a população ultrapassa esse número, torna-se impossível controlar seus membros somente pela ‘pressão dos pares’. No exército, o tamanho médio da Companhia, unidade sob comando de um capitão, é de cerca de 150 homens[7]. E muito mais... Tudo indica que 150 pessoas seja mesmo o tamanho máximo de um grupo em que todos se conhecem.
E o que isso tudo tem a ver com a origem da linguagem? A resposta tem a ver com as práticas sociais que mantêm um grupo coeso, ou com o que se quer dizer com ‘todos os membros do grupos se conhecem’. No caso dos chimpanzés que vivem em grupos de 50 indivíduos, as coalizões - manifestação de amizade e comprometimento - são externadas e mantidas pela prática social do cafuné. Isso toma em torno de 20 a 30% do tempo útil desses animais. Imagine agora um grupo de 150 indivíduos. Se a coesão social fosse mantida pelo cafuné, os indivíduos gastariam mais da metade do dia nessa atividade, o que garantiria ao homo sapiens um bilhete de primeira-classe rumo à extinção.
A idéia de Dunbar é que a linguagem teria surgido como uma espécie de ‘cafuné vocal’, necessário para manter coesos os grupos de hominídeos. Afinal, quantas vezes já fomos confortados por palavras gentis? A vantagem é que esse cafuné pode ser praticado em várias pessoas simultaneamente, e com um mínimo de esforço. Talvez até mais importante: sem a linguagem a única forma que teríamos para descobrir se algum aliado não é confiável, seria pegá-lo em fragrante no momento da traição; com a linguagem, alguém mais poderia fazer isso por nós, e nos passar um relatório detalhado no dia seguinte. A ‘fofoca’ seria então o principal uso da linguagem, sendo o instrumento chave para a estabilização de grandes grupos sociais.
Considerando que a linguagem é tida como o elemento X que separa os humanos do resto dos primatas, dizer que seu uso primário é a fofoca pode parecer um pouco ofensivo. Mas, brios a parte, não deve ser difícil descobrir qual é o uso principal da linguagem, ou, em outras palavras, sobre o que as pessoas conversam. Se você prestar atenção às conversas nas mesas vizinhas durante seu horário de almoço na cantina de seu local de trabalho, descobrirá que uns 2/3 das conversas giram em torno de temas sociais: quem está fazendo o quê com quem, se isso está certo ou errado, quem está subindo e, principalmente, quem está descendo. Mesmo conversas que começam com alto nível - uma discussão sobre a origem da linguagem, por exemplo - após 10 minutos viram uma troca de informações sobre as atividades acadêmicas (e não-acadêmicas) de colegas. Mas já sabíamos disso, não?
Talvez o leitor tenha percebido que há uma ‘ponta solta’ no argumento de Dunbar. De fato, podemos até nos convencer que um grupo de 150 pessoas seja o maior grupo possível que ainda funcione como uma unidade, mas por que a evolução iria pressionar os hominídeos a formarem grupos cada vez maiores? A resposta da defesa contra predadores não é satisfatória, pois os nossos predadores eram os mesmos dos babuínos e chimpanzés e, portanto, um grupo de 50 pessoas seria o suficiente. Talvez a resposta seja o longo tempo de amadurecimento de nossas crianças (uns 12 anos até atingirem a independência) que, dada a taxa de mortalidade da época, exigiria um grupo de apoio considerável para garantir sua segurança por períodos tão longos. Ou, o que é mais provável, um grupo grande seria garantia de vitória nos embates com grupos rivais e, como os militares modernos descobriram por tentativa e erro, nesse caso o tamanho ideal do grupo seria de 150 indivíduos.
O principio da deficiência e o ‘maternês’
As teorias de DEACON (1997) e DUNBAR (1998) são exemplos daquilo que em inglês se chama ‘thinking out of the box’, ou seja, de pensamento fora do padrão. Vejamos agora o que uma abordagem científica mais tradicional tem a nos dizer sobre a origem da linguagem. Se, contra Chomsky, a função da linguagem for mesmo a comunicação, então estudar a comunicação entre animais pode nos dar alguma pista sobre a origem da linguagem.
O caso mais estudado de comunicação entre primatas não-humanos em seu meio natural é o dos macacos vervet que vivem no sul da África (SEYFARTH et al., 1980). Esse macacos produzem vocalizações diferentes para alertar o grupo[8] sobre a presença de três tipos de predadores: leopardos, águias e cobras. Cada um desses sinais de alarme produz uma resposta distinta no grupo: correr para o topo de uma árvore no caso de leopardos, olhar para cima no caso das águias, e olhar para baixo no caso das cobras. Além do vocabulário extremamente limitado, outro fator importante, que é comum a toda comunicação ou sinalização produzida por não-humanos, chama a atenção: o objeto da sinalização (um leopardo, por exemplo) sempre está presente no momento da emissão do sinal. Animais ‘conversam’ sobre o aqui e o agora, muito diferente dos humanos que usam a linguagem para divagar sobre eventos distantes no tempo e no espaço. Nesse sentido parece haver mesmo uma descontinuidade entre comunicação animal e linguagem.
Os macacos vervet tornaram-se populares entre nós pelo fato de se comunicarem por sons, mas exemplos de comunicação utilizando sinais químicos, gestos, grunhidos, danças, etc. são abundantes no mundo animal, especialmente, no que concerne a escolha de parceiros para acasalamento. Há uma vasta literatura sobre o tema (HAUSER, 1996) e suas conclusões podem ser importantes para compreendermos melhor a origem da linguagem.
O ponto crítico da comunicação entre animais está na confiabilidade ou honestidade do sinal. Essa é uma decisão dificílima para a fêmea da maioria das espécies, em que o investimento na prole fica totalmente ao seu encargo. Como saber se aquele macho de penas vistosas fornecerá os melhores genes para sua cria? A teoria aceita atualmente é devida ao biólogo israelense Amotz Zahavi, e afirma que para um sinal ser honesto ele precisa ter um custo alto para o seu emissor (ZAHAVI, 1975). Por isso a teoria é conhecida como ‘princípio da deficiência’: a mensagem passada à fêmea por um pavão de cauda particularmente vistosa seria algo como “Olhe para mim! Sou tão bom que mesmo com essa cauda espalhafatosa e pesada consigo escapar de meus predadores!”. A idéia é bem atrativa e tem até certa utilidade fora da Biologia e Etologia. Explica, por exemplo, por que não recebemos folhetos de propaganda via SEDEX. Aliás, se recebêssemos, o remetente poderia ter certeza de que os leríamos com atenção.
Se os sinais biológicos precisam ter um custo alto para terem valor, ou de outra forma seriam simplesmente ignorados, como fica a situação da linguagem nisso tudo, já que seu custo é nulo[9]? Nesse aspecto, a linguagem jamais poderia ter evoluído da comunicação animal, exceto num contexto muito particular onde a relação de confiança mútua está implícita: a relação entre mãe e filhos. Esse cenário concorda com a hipótese do ‘maternês[10]’, proposta pelo antropólogo norte-americano Dean Falk em 2004, na qual a única opção das mães para acalmarem e controlarem seus bebês enquanto coletavam alimentos nas proximidades[11] era através da comunicação vocal – o maternês (FALK, 2004). À medida que as mães começaram a usar prosódia[12] para encorajar suas crianças a se comportarem ou a segui-las, o significado de certos sons (palavras) acabou sendo convencionado, dando origem ao elemento básico da linguagem na visão do programa minimalista de Chomsky.
Conclusão
Estamos em uma situação que pode ser muito bem descrita pela expressão ‘o constrangimento dos ricos’, ou seja, temos (pelo menos) três boas hipóteses para explicar o mesmo fenômeno - a origem da linguagem - e seria uma pena se tivéssemos de descartar qualquer uma delas. Mas talvez isso não seja necessário. Podemos imaginar que tudo começou com o maternês e, uma vez criado o replicador - o meme da linguagem - este começou a adaptar-se às nossas capacidades cognitivas e fonéticas, tornando fácil e natural a associação entre sons e conceitos. Um processo exótico em evolução, conhecido como Efeito Baldwin, pode ter garantido a incorporação em nosso genoma de padrões comportamentais culturais, que inicialmente deveriam ser aprendidos com as mães (BALDWIN, 1896); daí o instinto natural para a fala, observado por Darwin[13]. A expansão do léxico e, finalmente, a nossa dependência com a linguagem podem ser devidos ao seu papel na coesão dos grupos de nossos ancestrais hominídeos.
É claro que sem uma máquina do tempo nunca saberemos ao certo como a linguagem se originou, e o melhor que podemos fazer é propor cenários plausíveis e esperar pelas críticas para aperfeiçoar ou, eventualmente, abandonar nossas hipóteses. O cenário descrito aqui reúne três idéias excepcionais sobre a origem e evolução da linguagem. Não são as únicas e podem nem ser as corretas, mas ao tentarem explicar o surgimento da linguagem, acabaram por nos ensinar muito sobre o que é ser humano. E isso não é pouco.
Referências
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